domingo, 2 de outubro de 2011

Disputa territorial fez violência disparar


A violência em Tatuí teve o auge em 2003. Naquele ano, a SSP (Secretaria de Segurança Pública), do Estado de São Paulo, contabilizou 35 homicídios no município – a maioria, por conta do envolvimento de pessoas com o tráfico de drogas.
O principal motivo era a disputa territorial que bandidos travavam no Jardim Santa Rita de Cássia, bairro eleito pelo “crime organizado” como primeira “grande base” para distribuição de entorpecentes no município.
A criminalidade chegou ao Santa Rita junto com os primeiros moradores. Em meados de 1980, quando o bairro começou a se formar, o mercado paralelo do tráfico encontrou, naquela região, um “espaço próspero”. Junto com as drogas (na ocasião, somente maconha e cocaína), vieram as armas de fogo, revólveres e pistolas contrabandeados.
Não demorou muito e os traficantes começaram a se desentender. Iniciou-se, aí, uma guerra interna, na qual o principal objetivo era manter o poder sobre a comercialização de drogas. A disputa territorial provocou, somente em 2003, 14 assassinatos no bairro – quase metade dos homicídios registrados em todo o município. “Chegamos a ter semanas com cinco execuções lá”, lembrou o delegado titular do município, José Alexandre Garcia Andreucci.
Naquele ano, a violência alcançou o patamar máximo. Foi quando os traficantes do bairro começaram a recrutar bandidos das cidades de Carapicuíba e Osasco para a formação de grupos de extermínio.
Esses grupos, num primeiro momento, passaram a atuar sob o comando dos chefes do tráfico de entorpecentes. Posteriormente, também chegaram, segundo o delegado, a prestar pequenos serviços a quem não tinha no tráfico o sustento. “Na época, tivemos informações de que alguns comerciantes chegaram a contratar os executores para se livrar de bandidos”, contou.
Na avaliação de Andreucci, a atitude dos empresários locais, classificada como desesperada, ocorria porque eles, de modo geral, sentiam-se abandonados pelo Estado e à mercê do crime. “Trata-se de uma situação extrema. O morador era assaltado uma, duas, três vezes. Chamava a polícia e ela não conseguia agir. Ele sabia quem o havia assaltado e, como não tinha respaldo do Estado, decidia agir por conta própria, contratando os executores”, analisou.
Aproveitando-se dessa “brecha”, pessoas ligadas ao mundo do crime também começaram a utilizar os serviços dos grupos de extermínio. A intenção era eliminar os desafetos. Nesse momento, os homicídios deixaram de ter o tráfico como única motivação. Foi nesse período que os índices de violência dispararam. “A situação chegou num patamar que acreditávamos quase não ter volta”, comentou Andreucci.
O titular do município, na época delegado do 1o DP (Distrito Policial), era o responsável por atender aos casos que ocorriam naquela região. Andreucci testemunhou o aumento desenfreado da violência no bairro e a virada de jogo que houve no Santa Rita, a partir de 2005. Atualmente, ele é considerado um dos mais seguros do município. “Hoje em dia, o bairro é igual aos demais, com índice de criminalidade totalmente normal”, citou o delegado.
A realidade atual nem de longe lembra à qual os moradores estiveram sujeitos. Em meados de 2000, a situação no Santa Rita era tão preocupante e a violência tão grande, que os assassinatos passaram a ocorrer com índice de perversidade muito grande. “Eu cheguei a atender lá, no campo do bairro, duas pessoas mortas que tiveram os olhos e a língua arrancados”, lembrou Andreucci.
Os “requintes de crueldade”, segundo ele, eram adotados pelos executores para deixar uma espécie de recado e intimidar a população. “Nessa situação, eles queriam dizer que as pessoas haviam sido mortas por serem informantes da polícia”.
Com o avanço do crime e o aumento do domínio dos traficantes, não só sobre o território de venda, mas sobre os moradores, o panorama, que já era ruim, ficou ainda pior. Em 2004, a violência cresceu tanto que alguns traficantes, expulsos do centro do bairro, passaram a cobrar dinheiro dos moradores para permitir que chegassem às suas casas. O “pedágio” funcionava no início da ponte que interliga o Santa Rita ao bairro Rosa Garcia II. Os bandidos atuavam naquela região, especialmente durante a madrugada.
Os acontecimentos, propagados em toda a cidade, incutiram medo no restante da população do município. O próprio comportamento dos moradores – que se revoltavam pelo fato de serem taxados como marginais – fez a fama de violento do bairro crescer. “A situação chegou num ponto tal que até a escola que está lá (a Escola Municipal de Educação Fundamental “Magaly Azambuja de Toledo”) foi construída meio que por pressão”, contou o investigador Jorge Miguel Galego Colina. O policial civil acompanhou de perto, ao lado de Andreucci, a trajetória do Jardim Santa Rita.
A pressão, segundo ele, era, no caso, para separar as crianças do bairro das demais, que moravam em outras regiões do município. Até então, os alunos do Santa Rita estudavam na Escola Estadual “Altina Maynardes de Araújo”. “Como eles eram filhos de forasteiros, e moravam numa região muito perigosa, eles levavam um monte de problemas à escola”, disse o policial civil.
A segregação só fez aumentar o poderio do crime organizado, que, em determinado momento, passou a ganhar a simpatia dos moradores. A relação de “amor e ódio” ficou mais evidente em episódio no qual um grupo de pessoas, ligadas ao tráfico, furtou a “Magaly Azambuja de Toledo”. Os chefes dos pontos de droga, quando souberam do feito, ordenaram que os criminosos devolvessem as mercadorias levadas e deixassem o bairro em 24 horas. “Essa história é verídica. E funcionou, porque os moradores eram pessoas consideradas sem eira nem beira”, falou Andreucci.
O mecanismo, segundo o delegado, é o mesmo que deu origem às milícias no Rio de Janeiro. “O Santa Rita experimentou uma situação bem diferente da favela da Fundação Manoel Guedes, na qual a população não tinha ajuda, mas era usada pelos bandidos”, afirmou. O apoio dos chefes custava caro aos moradores. Muitos testemunhavam, involuntariamente, crimes dos quais não podiam denunciar.
A morte de Daniel Rita, que teve os olhos e a língua arrancados, esteve entre esses crimes que se tornaram insolúveis. A lei do silêncio, por muitos anos, impediu o esclarecimento de dezenas de assassinatos. Colina explica que o problema, além do medo dos moradores, tinha como causa o fato de que os crimes de execução eram praticados por pessoas que não residiam no bairro.
Na maioria dos casos, os matadores eram pessoas ligadas aos comandos do tráfico, que vinham das cidades de Carapicuíba e Osasco. “Eles passavam o fim-de-semana em Tatuí, faziam as fitas (os crimes, no jargão policial) e voltavam para suas cidades de origem”, explicou.
Como a polícia quase não conseguia informações sobre os criminosos, ficava praticamente impossível esclarecer as autorias. Rita, apontado como o primeiro “grande” chefe do tráfico no Santa Rita, era temido no bairro. “Ele era suspeito de ter cometido pelo menos seis homicídios e o principal responsável por ter montado um ‘minipolo’ de Osasco em Tatuí”, argumentou Andreucci.
O traficante, assassinado, foi sucedido por Renato Alexandre Bracco e, em seguida, por Osvaldo dos Santos, mais conhecido como “Carcará” – este último, o mais famoso.
A lei do mais forte imperou no Santa Rita até o ano de 2004, quando a PC começou a desbaratar o tráfico. Nessa mesma época, houve migração do comércio de entorpecentes para a favela da Fundação Manoel Guedes.
A primeira grande ação da polícia - no caso, Civil - ocorreu com a prisão de Bracco e outros quatro comparsas. “Nós começamos a virar o jogo quando identificamos os chefes do tráfico e conseguimos prendê-los”, contou o delegado titular.
A detenção dos quatro, feita de maneira quase cinematográfica, fez com que a população passasse a acreditar no trabalho da polícia, sustenta o delegado. “Demorou meses para que pudéssemos esclarecer o caso”, lembrou Andreucci.
Na época, 18 investigadores participaram da detenção dos quatro suspeitos, que não ofereceram resistência. Eles ocupavam um sobrado, no qual havia dezenas de armas. “Assim que chegamos, eles começaram a jogar fora as armas, com medo de que fossem executados”, comentou o delegado. “Foi uma situação totalmente surreal, literalmente chovia arma. Coisa de louco mesmo”, adicionou. A quadrilha também era suspeita de planejar a execução de pessoas no bairro.
A prisão do grupo, além de interromper um hiato de anos sem intervenção efetiva do poder público, representou um primeiro passo no resgate da confiança da população junto às forças de segurança. Nessa mesma época, em 2004, a Polícia Militar passou a intensificar o patrulhamento no bairro, feito, até então, por mais de uma viatura. Até aquele ano, como havia risco aos soldados, eles só se aproximavam do bairro, principalmente à noite, em duas ou mais viaturas. “A Civil nunca teve essa dificuldade. O nosso problema era mais conseguir testemunhas e informações dos crimes”, citou o delegado.
Com a chegada de infraestrutura (asfalto da Teófilo Andrade Gama, principal ligação do bairro com o centro, e, principalmente, iluminação pública), o crime organizado tornou-se mais vulnerável. A ampliação do asfaltamento da via permitiu uma resposta mais rápida da PM, no sentido de atender às ocorrências, e a iluminação, mais segurança aos moradores.
A presença das entidades sociais, Cosc (Conselho Social da Comunidade) e Fusstat (Fundo Social de Solidariedade de Tatuí), bem como de igrejas, também teve papel importante no processo de “libertação” dos moradores em relação aos traficantes.
A partir desse momento, houve mudança substancial também na natureza dos crimes registrados no Santa Rita e seu entorno (bairro Tanquinho e Conjunto Habitacional “Orlando Bolzan”). Os assassinatos, até então, eram ligados à disputa de poder e acertos de contas. Atualmente, são ligados a brigas e desentendimentos. “Pelo que me recordo, de dois anos para cá, houve apenas dois homicídios. Todos esclarecidos”, comentou Andreucci.
O titular, que recebe dados estatísticos de todo o município, salientou que os crimes mais registrados naquela região são de ameaça e brigas. Furtos e roubos também ocorrem, mas em menor proporção. “A escrivã que cuida de todos os registros do bairro disse que ele está mais tranquilo do que a vila Esperança”. O outro bairro, aliás, tem mais prisões por tráfico de drogas do que as demais regiões do município.
As estatísticas da região do Santa Rita - as atuais - contrariam os mais céticos. Isso porque o número de habitantes – aproximadamente 16 mil pessoas – aumentou, mas a violência diminuiu. “Os investimentos feitos pelo poder público e a presença dos organismos policiais, mais as entidades e igrejas, foram os principais responsáveis por esse novo panorama”, disse o delegado.
Há ainda outro elemento, não menos importante no contexto, que fez com que o tráfico deixasse o bairro e, com isso, levasse embora a violência. A geografia do Santa Rita, localizado em área mais plana que a favela da Fundação Manoel Guedes, não permitia aos traficantes se anteciparem à chegada das polícias. “O bairro também não era passagem para nenhum outro ponto da cidade, a não ser a zona rural, que era muito pouco habitada”, explicou Colina.
Como o Santa Rita ficava (e ainda fica) afastado do centro, não atraía os compradores de entorpecentes. Pelo menos não de todo o município, como, anos depois, ocorreu na favela da Fundação. “A questão da distância, para o tráfico, tornou a região desinteressante”, comentou o investigador de polícia.
A partir da atenção especial dispensada pelos órgãos policiais (a GCM – Guarda Civil Municipal também chegava ao bairro, pela primeira vez, com uma base operacional), o crime organizado desistiu de sofrer baixas, migrando-se.
Ao passo em que os moradores ficaram livres dos grandes traficantes – pelo menos no sentido de não se tornarem mais reféns –, passaram a contribuir mais com a polícia. “Hoje, tudo mudou. Tanto é que, no caso de uma briga recente, que terminou na morte de um jovem de 19 anos, choveram testemunhas que queriam ajudar a polícia. A lei do silêncio não impera mais lá”, afirmou Andreucci.
A população daquela região – e da cidade, de modo geral – tem ajudado especialmente a PC a manter os índices de esclarecimentos acima da média do Estado. São Paulo tem média de esclarecimento de 25%. Tatuí, até o momento, de 100% dos casos de homicídio.
IDENTIFICAÇÃO
Na mesma época em que o tráfico deixou de ser o maior problema do bairro, os moradores foram criando raízes e se estabilizando na cidade. O Santa Rita teve como maioria de seus habitantes, pessoas vindas de diversas partes de São Paulo. “À medida que esse pessoal começou a trabalhar, ter filhos aqui, passou a se identificar com o bairro. Nesse momento, para eles, não servia mais a figura de um xerife à margem da lei”, argumentou Colina.
A partir de então, a população local passou a procurar a polícia para fazer denúncias. “Os próprios moradores acabaram expulsando, em termos, os traficantes, quando começaram a colaborar com o trabalho da polícia”, adicionou o investigador.
Aos poucos, o Santa Rita foi deixando de ser “terra sem lei” para se tornar “terra próspera”. Com a “adoção” por parte dos “forasteiros” do bairro como lar, a situação de violência mudou. “A mentalidade do bairro mudou. Seus moradores queriam e querem se integrar mais à cidade, e isso ajudou”, disse Colina.
Maria José de Oliveira Machado, a “Zeza”, é prova de que os moradores do bairro estão dispostos a deixar o passado para trás e apostar no futuro. Zeza é voluntária no Centro de Capacitação do Fusstat, no bairro, desde 2009. Desde então, dá aulas de crochê para mulheres que querem obter renda extra e mudar de vida.
A voluntária passou a frequentar o bairro bem antes do Fusstat ou do Cosc (a primeira entidade a entrar, literalmente, no bairro) iniciarem suas atividades lá. “Eu tinha um irmão que morava aqui”, contou. Como sempre o visitava, Zeza passou a criar um vínculo maior com os moradores, ignorando a violência que pudesse vir a atingi-la. “O bairro, em si, não era tão violento para quem morava aqui e não tinha ligação com drogas. Havia mais fama do que é perigo”, disse.
O irmão dela, por exemplo, nunca teve problemas no bairro, mas foi vítima de uma fatalidade em outro ponto do município: no Santa Cruz. “Ele foi morto com oito tiros nas costas, depois que tentou ajudar uma moça que estava em apuros”, relatou.
João Reginaldo trabalhava como eletricista para uma empresa que construía praças de pedágios. “Fiz questão de contar a história dele, para deixar claro que violência independe de local. Eu sempre costumo dizer que tem gente que presta e gente que não, isso em todos os lugares do mundo. Mas nós é que fazemos o lugar”, testemunhou.
A professora de crochê, que ainda não reside no bairro, deve mudar-se para lá em breve. Ela foi uma das contempladas com o sorteio das 432 casas populares, construídas pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), no bairro Tanquinho. “Graças a Deus, ganhei uma casa e devo mudar-me para cá, com muito orgulho”, comemorou.
O Santa Rita, para a voluntária, é especial não só pela lembrança de seu irmão, mas pelos amigos que Zeza fez na região. “Eu criei uma estrutura familiar aqui, porque amigos são família. Muitas vezes, eles fazem mais coisas do que um parente. E eu tenho uma família muito grande e maravilhosa”, adicionou.
A crença nos moradores do bairro, pelos quais Zeza tem grande apreço, foi o que desencadeou o processo de reestruturação do Jardim Santa Rita de Cássia, descrito ao longo desta série de reportagens. Não fosse isso, Juvenal Marques Rodrigues, “seu Juvenal”, como é conhecido, presidente do Cosc, não teria ousado entrar no bairro e, a partir daí, aberto as portas da oportunidade para os que lá residem. Empresário bem-sucedido, Juvenal adotou o Santa Rita por acreditar que “todo ser humano merece uma chance”.
“Eu diria que fiz isso por uma consciência em Deus, uma consciência dentro dos ensinamentos de Jesus Cristo, porque as coisas materiais, o sucesso profissional, ele nos proporciona prazeres, mas felicidade, você só encontra quando se aproxima do próximo, quando você se doa”, comentou.
A presença do Cosc, que está no bairro há praticamente oito anos, culminou no “enobrecimento” do Jardim Santa Rita de Cássia e, consequentemente, na mudança de sua imagem. O processo, influenciado por outras instituições e investimentos do poder público, não pode ser esquecido. Pelo menos não para que sirva de exemplo para as futuras gerações.

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